sábado, 9 de outubro de 2010

Pijama

O teu avião no céu riscava a chuva, tanto quanto me riscou o coração.

Vesti o teu pijama.
Esta já não é a minha casa.
Perdi a minha casa quando partiste.
Perdi o sítio onde se guarda o coração.
Já nem tenho sítio onde pousar a cabeça, nem os sonhos, nem as lágrimas.
Perdi o meu lar.
Vesti o teu pijama.
Para não perder o teu cheiro.

sábado, 11 de setembro de 2010

Condenadas

Este poderá ser o último fim-de-semana que passamos juntas. Que nunca me esqueça. Por favor, que nunca me esqueça.

Pintei as unhas de roxo, enquanto via
Os Condenados de Shawshank.
Tu tentaste ver mas acabaste por adormecer, como acontecia sempre, desde sempre.
O verniz secou.
Tu acordaste já perto do fim.
Pediste-me para te contar o que tinha acontecido, como fazias sempre, desde sempre.
Eu ri-me e disse-te que tinhas que ver. Que estavas a perder uma das mais belas historias e que eu nunca ta poderia contar tão bem.
Tu disseste-me para te dizer, que acabarias por nunca o ver sozinha.
Eu sabia que era verdade. Mas não te disse a' mesma.
Então perguntaste-me:
"Teve um final feliz ou triste?"
E eu respondi-te que era o final mais feliz de sempre, pensando para mim que te estava a mentir.
Nunca conheci nenhum final feliz.
Por isso, apenas peço. Que nunca me esqueça, por favor.
Que nunca te esqueça.

12 de Setembro de 2010.







domingo, 28 de setembro de 2008

Candy



This is what we're after.

- Seremos drogados que escrevem com verniz nas paredes.
Que importa?
Estaremos vivos.


O mais estranho dos marshmallows.

O funeral do coelho branco.


Foi o funeral do coelho branco.
E a menina vestiu o seu melhor vestido. Aquele que o pai lhe dera nos anos, antes de a beijar na testa e apertá-la com força para depois fechar a porta.
Enquanto se aproximava do armário
o chão da velha casa rangia e o cheiro a velho e morte estava em tudo, menos no vestido azul, dobrado em quatro partes iguais como as páginas amarelas da bíblia da mãe. As bolinhas do sapato de verniz, já sem verniz, eram semelhantes às do vestido e ao universo que reluzia nos seus olhos. Encolheu os pequenos dedos para fazê-los caber nos velhos sapatos. Retirou a fita do cabelo escurecido pelo sebo e pousou-a em cima da cama. Pôs-se de bicos de pés para espreitar a cara sardenta ao espelho. Pôs a caixa cara dos sapatos debaixo do braço e pegou na fita desfiada. Olhou para os pés, já rosados, e ouviu o avô a abrir a porta grande e a aproximar-se com um embrulho tão bonito como os das histórias que a prima lhe contava. Disse-lhe que a avó gostaria de a ver pela última vez com uns sapatos bonitos. E assim o fez, não só para ver a avó pela última vez, como para se despedir do avô também. Pensou que se o avô abrisse de novo a porta grande talvez lhe trouxesse um novo embrulho e não precisasse de encolher mais os pequenos dedos. Desceu as escadas uma a uma e dirigiu-se para o quintal. O coelho branco era vermelho. Assim como o avental da mãe. A menina sentou-se no chão e levemente colocou a fita no seu pescoço. Fez-lhe o laço que gostava de usar na cabeça. Abriu a caixa como quem abre o mundo e como quem pega na dor pegou no coelho branco. Olhou uma última vez, como o avô a ensinara, e fechou a caixa. Dirigiu-se à cozinha e pousou-a ao pé da mãe.
Subiu as escadas uma a uma e dirigiu-se para o quarto. Despiu o vestido azul a cheirar a morte e dobrou-o como quem dobra a vida. Tirou os sapatos de verniz, já sem verniz, e esticou os dedos, já encarnados. Ficou de bicos de pés a olhar para a cara sardenta que estranhamente já não reconhecia.

Até que ouviu gritar: "O almoço está na mesa."


O mais estranho dos marshmallows.

Sentido

Sentido.

Sen-ti-do.

Sem ti dói.

O mais estranho dos marshmallows.

Sentido da Queda

Não te sentes tão perto do abismo, disse ele.

Lembras-te quando te querias atirar da varanda só para saberes se conseguias voar? - perguntou ele.
Só queria saber se ter asas doia. E tinha 6 anos, não é a mesma coisa, disse ela.
E quando engoliste um pedaço do espelho da mamã?
Queria ver se era bonita por dentro, disse ela.
E os joelhos esfolados?
Isso era só porque gostava de jogar ao berlinde, disse ela.

Porque não te sentas aqui? - perguntou ela.
Estás demasiado perto do abismo e aí faz muito frio, disse ele.


O mais estranho dos marhsmallows.

sábado, 30 de agosto de 2008

Queda do sentido

Poderia jurar-te aqui, ontem, que sou diferente.
Que a mim nunca me fugirá nada por entre os dedos. Nem o tempo feito de areia num relógio antigo, nem a vontade de estrangular a vida a cada segundo que jamais voltarei a viver.
Poderia jurar-te aqui, um dia, que tudo fará sentido.
Que nós faremos sentido. Que algures, entre o fim da tarde e a queda da noite e dos nossos corpos sobre ela, vou enlaçar os meus dedos nos teus e segurá-los com a mesma força com que segurava a ilusão de ser diferente e de ser meu cada pequeno grão de tempo.
Poderia jurar-te aqui, amanhã, que estarei cá.
Que não me fugirá a vida estrangulada por entre os dedos, dormentes, de tanto apertar os teus nos meus, nem a vontade de me manter assim, gangrenada. Que o amanhã não me trará cansaço e que a queda da noite não me esmagará contra ti e todos os dias iguais na sua diferença indiferente.
Poderia jurar-te aqui, hoje, que continuarei a fingir ser diferente.
Que enquanto a vida já moribunda me estrangular lentamente até à ponta dos dedos, eu continuarei a fingir que o tempo é meu e que a queda da noite em cima de nós, e a nossa em cima da vida, faz sentido.

O mais estranho dos marshmallows.